No Dia das Crianças, a reflexão sobre o significado da infância ultrapassa o universo das brincadeiras e dos presentes. Para a doutora em Enfermagem Daniela Tafner, especialista na questão racial e professora convidada no Instituto de Pesquisa Afro-Latino-Americana (Alari) da Universidade de Harvard, o tema deve ser tratado como uma pauta de direitos humanos.
“Falar sobre o Dia das Crianças nunca será uma narrativa igual para todos. Cada um de nós viveu momentos únicos, mas para as crianças negras do nosso país, a desigualdade de direitos e as violações se repetem e se perpetuam ao longo da vida”, afirma.
Os dados reforçam essa realidade. Segundo o UNICEF, 70% das crianças negras estão mais expostas à pobreza, 30% têm maior risco de exclusão escolar e 75% das mortes violentas de crianças e adolescentes no Brasil atingem meninas e meninos negros.
“Com frequência, as notícias mostram crianças mortas ‘por acidente’ – e quase sempre são negras. São elas que percorrem longos caminhos para acessar saúde e educação”, destaca Daniela Tafner.
A pesquisadora alerta que, enquanto o comércio transforma a data em uma celebração de consumo e alegria, a maioria das crianças brasileiras enfrenta a dura ausência de direitos básicos.
“A maioria das crianças não terá brinquedos, locais seguros para brincar ou alimentação adequada. Entre as crianças negras, 65% estão submetidas ao trabalho infantil e 63% vivem em situação de violação dos direitos da criança e do adolescente”, aponta.
O brincar, segundo Daniela, é uma ferramenta essencial para o desenvolvimento e a construção da identidade. No entanto, ela observa que o racismo estrutural se manifesta até nas brincadeiras.
“Quantas bonecas negras encontramos nas prateleiras? Quantos brinquedos trazem crianças negras nas embalagens? O brincar é essencial, pois é por meio dele que a criança transforma o imaginário em realidade. No entanto, essa realidade muitas vezes não inclui a pessoa negra. Ela não se vê, não se percebe presente”, explica.
A doutora reforça que a infância nunca é neutra, pois é moldada por políticas públicas e práticas que podem incluir ou excluir.
“As escolas, os serviços de saúde e a sociedade devem ser espaços acolhedores para as crianças negras, que enfrentam desigualdades naturalizadas no cotidiano. Quando o Estado e a sociedade falham em garantir direitos básicos, também falham em proteger o futuro. E esse futuro tem cor: a cor da pele das crianças negras”, afirma.
Daniela recorda ainda um exemplo histórico emblemático para ilustrar como o racismo invisibiliza talentos e referências:
“Basta lembrar de Machado de Assis, que por décadas foi retratado como branco para que sua genialidade fosse aceita e valorizada. Essa é uma forma simbólica de excluir a inteligência e a potência das pessoas negras.”
Para ela, o caminho para a mudança começa na representatividade e na educação antirracista.
“Nossas crianças negras precisam se ver nos livros, nas histórias e nas paredes da sala de aula. Precisam ser ouvidas e elogiadas por sua beleza e inteligência. A educação antirracista começa na infância, e começa em nós. Ela salva vidas”, ressalta.
Neste Dia das Crianças, Daniela Tafner propõe um novo olhar sobre o presente que o Brasil oferece às suas crianças.
“Que possamos ir além dos brinquedos e doces. Que possamos presentear nossas crianças negras com dignidade, escuta, afeto e justiça. Porque infância é direito, não privilégio”, conclui.